O retrato que nos enganou: a criança não era Maria Antonieta, era a irmã
10 de outubro | por Rodrigo Pontes
A história às vezes adora uma reviravolta. Um retrato icônico, que moldou a maneira como imaginávamos a infância de Maria Antonieta, pode na verdade mostrar outra princesa: sua irmã Maria Carolina.
A descoberta — assinada pela pesquisadora Catriona Seth (University of Oxford) em colaboração com o Musée d'Art et d'Histoire de Genebra — mistura arquivos, olhos atentos e uma boa dose de curiosidade acadêmica.
Em vez de um grande tratado, este texto vem em três atos: a apresentação do caso, as pistas que fizeram acender a lâmpada da suspeita, e por fim o que isso nos diz sobre como contamos (ou trocamos) rostos ao longo do tempo.
A imagem que contamos
O desenho em questão foi feito por Jean-Étienne Liotard em 1762 e tornou-se, por décadas, a espécie de “foto de infância” que nos ajudou a imaginar a jovem que viria a ser rainha. A figura fixa, o olhar direto e o utensílio de tear tornaram-se parte do imaginário.
Mas a pesquisadora notou que um detalhe-chave — a medalha de uma ordem de cavalaria — não bate com a cronologia da mais nova das princesas: Maria Antonieta recebeu essa condecoração anos depois.
Em contrapartida, a irmã Maria Carolina já a possuía em 1762, quando Liotard trabalhou em Viena. Uma pista pequena, mas decisiva — como aquele fio que desata um novelo inteiro.
Ou seja: o que achávamos ser um retrato “definitivo” da futura Rainha de França é muito provavelmente o rosto de quem cresceu ao lado dela. História sendo rearrumada com olhos de detetive.
Pistas, arqueologia do detalhe e aquele brinde à curiosidade
As evidências não vieram de um único golpe de sorte: foram observação minuciosa, confronto com outros retratos e checagem em arquivos museológicos. Pequenos acessórios — brincos, medalhas, até a rosa em outra obra — fizeram a diferença.
Catriona Seth reconheceu brincos que reaparecem num retrato posterior atribuído a Maria Antonieta e notou uma rosa, motivo recorrente nas imagens que verdadeiramente a representam. Elementos que, isolados, parecem banais; juntos, constroem um argumento forte.
No MAH de Genebra, a confusão já estava presente quando os desenhos chegaram ao acervo em 1947 — havia trocas de identidade na proveniência. Ou seja: o erro pode ter circulado por décadas, alimentado por etiquetagem humana.
E a lição? Nunca subestime um broche. Nem a obstinação de uma pesquisadora. (OK, e sim — eu acabei de olhar minha própria foto antiga procurando medalhas imaginárias. Que se lixe a vaidade.)
E agora? Autenticação, IA e o futuro da exposição
A descoberta levou ao lançamento do projeto INTERART, uma colaboração entre Oxford, MAH (Genebra), o Idiap Research Institute e a Escola de Justiça Criminal da Universidade de Lausanne. O objetivo: combinar pesquisa de arquivo e ferramentas modernas (sim, inclusive IA) para tornar a identificação mais robusta.
Os curadores destacam que pigmentos envelhecem, olhares mudam e, por isso, técnicas automáticas podem ajudar — não para substituir o humano, mas para orientar onde olhar com mais atenção. Em outras palavras: tecnologia a serviço do bom e velho olhar crítico.
Há, ainda, um desdobramento prático: uma nova exposição de Liotard está prevista no MAH para o outono de 2026 — onde finalmente poderemos ver, lado a lado, quem era quem. Vai ser interessante ver a etiqueta do quadro no museu: “surpresa histórica” em letras pequenas?
Uma pequena correção de identidade em um papel de 1762 abre janelas sobre como contamos histórias visuais. E se você, caro leitor, queria um final dramático — aqui vai: história é humana, e humanos erram. Felizmente, também corrigem.







